Sou aquele gaúcho que nunca usou bombacha. Mesmo morando em São Borja, e depois em Uruguaiana bem ao lado de um CTG. Lá conheci o legítimo gaudério com seus costumes da lida campeira, sua hospitalidade bem característica, seus trejeitos e linguajar. E foi aí que fiquei sem graça de andar pilchado. Eu de bombacha seria mais um atrevimento folclórico. Lá sei eu, acho que por questão de costume, de tradição.
Pois “tradição” vem do latim traditione que significa transmissão. Daí vêm as palavras tradução e traição. Assim, pode-se dizer que quando os costumes do passado não traduzem sensatamente as coisas do presente, em lugar de tradição existe traição. Qual é a tradição do gaúcho? Os Centros de Tradições Gaúchas respondem muito bem a esta pergunta e fazem um excelente trabalho. Mas, no meio da vida agita, sem cavalo e bombacha, o que significa ser gaúcho? Aí então precisamos fazer a tradução. Isto é, a transmissão dos costumes de maneira funcional e não literal. Por exemplo, se a tradução do alemão para o português for ao pé da letra, não vamos entender nada ou até mesmo algo bem diferente. Isto vale para o hebraico e o grego da Bíblia. Isto vale para qualquer tradição escrita ou oral.
No caso da história deste 20 de Setembro, não podemos hoje pegar as armas, invadir Brasília, derrubar a CPMF e os Renans Calheiros do Império dos impostos e da corrupção. Mas então, como entender nosso hino: “Mostremos valor, constância, nesta ímpia e injusta guerra, sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra”? É preciso traduzir, e aí entra o bom senso dentro das próprias regras da democracia e da ordem civil.
Tradição sem tradução foi um problema sério no caminho de Jesus. É que ele e os seus discípulos, mesmo sendo judeus, estavam mais preocupados com a funcionalidade do Evangelho – que é o amor – e as vezes esqueciam de certas regrinhas. Mas os fariseus, mal intencionados e cegos em seus costumes, há tempo haviam perdido o sentido da verdadeira adoração. Certo dia veio a resposta do Mestre: Vocês invalidam a mensagem de Deus para seguir as suas tradições. Hipócritas! Isaías estava certo: “Deus disse: Este povo me honra com a boca, mas o seu coração está longe de mim” (Mateus 15.6,7). Jesus não queria derrubar os costumes antigos. Queria apenas que as tradições fossem corretamente interpretadas. Na verdade, faltou a essência da religião quando o próprio Cristo foi rejeitado. Mais tarde o apóstolo Paulo lembrou: Nós adoramos a Deus por meio do seu Espírito e nos alegramos na vida que temos em união com Cristo Jesus em vez de pormos a nossa confiança em cerimônias religiosas (Filipenses 3.3).
Tem um poema bem interessante do saudoso Teixerinha: “O gaúcho é um brasileiro igual a qualquer outro. Eu quero dizer a esses gaúchos que se excedem no culto à tradição, fazendo fronteira de seu Estado, que isso é um bairrismo bobo, um provincianismo bobo. Ser gaúcho não é andar de espora, nem tomar chimarrão, nem usar bombacha. Ser gaúcho é ser nascido no Rio Grande do Sul. E ninguém nasce de bota e espora, pois já nasceria ferindo a mãe."
Marcos Schmidt
Jornal NH de 20 de setembro de 2007
Jornal NH de 20 de setembro de 2007