"Pessoas sem a verdade fazem da religião um meio de enriquecer, diz a Bíblia (1 Timóteo 6.5). "Isto a gente vê também na política. Por isto o descrédito. O que é ruim, porque ninguém vive sem estas duas coisas. Martinho Lutero, no escrito “Da autoridade secular”, lembra que igreja e estado são dois regimentos de Deus – a mão direita e a mão esquerda dele. Diz isto num tempo quando as duas ordens viviam de mãos dadas para tirar, no lugar de oferecer. Insistiu na necessidade de distingui-las e relacioná-las corretamente. Sobre a igreja, escreve: “Seu governo não é outra coisa que pregar a palavra de Deus e com ela conduzir os cristãos, e vencer a heresia”. Da política, lembra que a “instituição humana não pode estender-se ao céu e sobre a alma, mas somente sobre a terra, o convívio externo dos seres humanos, onde pessoas podem ver, reconhecer, julgar, opinar, castigar e salvar”.
Este escrito de 1523 deveria ficar na agenda de qualquer político, sobretudo se é cristão. Para não esquecer que, se igreja e estado constituem as mãos divinas, os dedos são humanos, fracos, tortos, sempre prontos para manusear o poder em benefício próprio. Por isso, o que Lutero testemunha sobre os desmandos do seu tempo é bem moderno: “Não conhecem nem fidelidade nem verdade, e portam-se de uma maneira que até ladrões e bandidos considerariam excessiva. Seu regime secular é tão decadente como o dos tiranos eclesiásticos”. Uma triste realidade que o apóstolo Paulo também viu, e por isto alertou os cristãos do império romano: “Vivam de acordo com o evangelho de Cristo” (Filipenses 1.27). “Vivam” é “politeuste” no grego, palavra que aponta para a cidadania responsável.
No pensamento de Lutero, política é o esforço constante e paciente para estabelecer e manter uma ordem social compatível com os valores do cristianismo. Valores prescritos nos Dez Mandamentos, na ética, na moralidade. Reconheceu que a última finalidade do governo é proteger a humanidade do caos. Enquanto o instrumento da igreja é o Evangelho, que transforma corações pelo poder do Espírito Santo, o estado tem nos dedos o poder da lei para a paz social – nos dedos porque as mãos são de Deus.
Marcos Schmidt
Jornal NH de 23 de setembro, 2010