Desde o último dia 11 de agosto vigora no município de Entre-Ijuís, RS, uma lei que obriga os alunos do Ensino Fundamental a lerem trechos bíblicos no início das aulas. O vereador, autor da lei, ficou assustado com a repercussão negativa. Numa entrevista disse que queria ajudar a fortalecer e despertar a fé nas crianças. No entanto, o legislador esqueceu - ou não sabe - do sábio Artigo 5º da Constituição brasileira, que nos oferece liberdade de culto e credo religioso.
Ignorância ou má intenção, isto é apenas um exemplo deste grave problema já mencionado aqui - desta mistura de fé e política, sobretudo quando religiosos obrigam seus adeptos a votarem neles e depois, eleitos, forçam os cidadãos públicos com regras que não têm nada com a ordem política. É oportuno então lembrar os inteligentes comentários de Lutero (1483-1546) a respeito:
- Se, pois, teu príncipe ou senhor temporal te ordenar que creias isto ou aquilo, ou se te ordenar entregar livros, deves dizer-lhe: Amado senhor, é meu dever obedecer-vos com corpo e bens. Dai-me ordens na medida do vosso poder na terra, e obedecerei. Contudo, se me ordenais crer e entregar livros, não obedecerei. Pois neste caso sois tirano e vos excedeis. Dais ordens onde não tendes nem direito nem poder (Da Autoridade Secular, Obras Selecionadas de Martinho Lutero, volume 6, p.103).
Dias atrás assisti no horário eleitoral um candidato que se intitulava “pastor e delegado de polícia”. Fiquei pensando, de que maneira alguém pode ser estas duas coisas ao mesmo tempo? E agora ele quer ser deputado? Lutero viveu esta confusão de igreja com política em seu tempo, e por isto mesmo alertou:
- Os pastores hão de abandonar a palavra de Deus e não governarão as almas com ela. Confiam esse dever aos príncipes seculares, para que esses o executem pela espada. Por outro lado, os príncipes temporais hão de tolerar, ou praticarão eles mesmos, usura, roubo, adultério e outras coisas más, para depois mandarem os pastores castigar essas coisas com bulas e excomunhão, invertendo, dessa forma, maravilhosamente o sapato: as almas governam-nas com ferro, e o corpo, com cartas, de modo que os príncipes temporais governam espiritualmente, e os príncipes espirituais, temporalmente (p.104).
Sem dúvida, o que o reformador aconselhou naquele tempo precisa ser analisado neste contexto político e religioso em que se vive, ou então ainda seremos governados por um bispo e nossas assembléias legislativas minadas de fundamentalismo. E daí Lutero tem uma profecia: Uma coisa conseguirão com essa inteligência maravilhosa, quebrarão o pescoço e lançarão o país e o povo em desgraça e miséria (p.105).
Na verdade, é preciso sim, cristãos que assumam cargos públicos e que sejam luz no meio das trevas em que nossa política sobrevive. E para tais pretendentes, o teólogo alemão diz algo que deveria ser a primeira promessa de campanha:
- Aquele que quiser ser príncipe cristão tem que, realmente desistir da idéia de querer governar com violência. Pois maldita e condenada é toda a vida que se vive e busca em benefício próprio. Malditas todas as obras não inspiradas pelo amor. Elas se inspiram no amor quando não se deixam guiar pelo prazer, proveito, honra, comodidade e salvação da própria pessoa, mas quando procuram, de todo o coração, o proveito, honra e salvação de outros (p.106).
Que se tenha esta sabedoria, política pra cá, religião pra lá, mesmo quando não se vive sem as duas.
Marcos Schmidt (Jornal NH - 31 de Agosto de 2006)